“Na sexta-feira, a Folha flagrou operários desviando bens pessoais no depósito provisório para onde estavam sendo levados os destroços, na região portuária.
A prefeitura, que ainda não havia liberado acesso ao local, informou no sábado que quatro foram identificados pelas fotos e seriam demitidos pelas empresas responsáveis.
O prefeito do Rio, Eduardo Paes (PMDB), classificou como ‘delinquentes’ os funcionários flagrados no canteiro que servia de depósito intermediário do material.
‘Ali está a miséria humana retratada. É inacreditável que alguém numa situação como essa vá roubar - aquilo é roubo - de um entulho vindo de uma tragédia. Eu vejo com muita tristeza, com uma certa raiva’, afirmou ontem.”
Óbvio que qualquer pessoa se sente revoltada e triste pelo que o prefeito chamu de miséria humana. Mas, do ponto de vista jurídico, existem dois fatores diferentes aqui: um relativo ao direito penal (a suspeita de que houve roubo) e outro relativo a direito civil-administrativo (o direito dos moradores de serem ressarcidos pelos objetos levados pelos funcionários).
O ‘roubo’
Como a reportagem explicou, os entulhos não estavam isolados, mas despejados ao lado do canteiro onde trabalham os funcionários. Assim, não houve qualquer violência ou ameaça dos funcionários para terem acesso aos objetos que não eram seus. Para que haja um roubo, é necessário que haja violência ou grave ameaça. Não havia ninguém no local para ser ameaçado ou sofrer a violência. Logo, não houve roubo propriamente dito. Quando muito, poderia haver furto (quando alguém tira algo de outra pessoa sem violência ou grave ameaça) ou apropriação indébita (que é quando alguém, de posse de um objeto que não é seu, toma-o para si).
Mas, antes de chegar à conclusão de que houve um crime, é preciso saber se os funcionários sabiam que aquele monte de entulho era mesmo um entulho ‘protegido’ ou se achavam que havia sido abandonado.
Imagine a cena: eu tenho uma camisa velha que não quero mais e resolvo deixa-la na rua para quem quiser usa-la. Quem pegou não está se apropriando de minha camisa porque, antes que ele se apropriasse dela, eu já a havia abandonado.
No caso da matéria acima, o advogado de defesa obviamente vai alegar que os objetos já haviam sido abandonados ou, melhor, que as circunstâncias davam a entender que já haviam sido abandonados (já que não estavam protegidos) ou mesmo que sequer sabiam que eram objetos do prédio (poderia ser simplesmente um amontoados de objetos deixados ao relento.
Agora imagine a mesma camisa no mesmo local. Só que ela caiu de meu ombro enquanto eu andava pela rua. Nesse caso não houve abandono e, por isso, ninguém poderia se apropriar dela. Quem a achou deveria devolve-la a mim, à polícia ou algum centro de achados e perdidos, ou simplesmente deixa-la onde está.
No caso da matéria acima, a acusação alegará que, como agentes contratados pelo governo, aqueles funcionários tinham o dever de proteger os bens e que não poderiam presumir nada. Vai ficar por conta da justiça decidir, mas a questão não é tão clara quanto parece.
Voltando ao roubo: se os funcionários acharam que aquilo já não tinha dono, então não houve a vontade de “subtrair coisa alheia”. Se os objetos já haviam sido abandonados, já não eram alheios e, portanto, não é possível rouba-los ou apropriar-se deles indevidamente.
Para piorar: dizer que alguém cometeu um roubo sem que isso seja verdade é um crime: calúnia, o que gera punição penal para quem disse e também a obrigação de reparar civilmente pelo que foi dito.
Direito de ser ressarcido
Por outro lado, a prefeitura, que largou o entulho sem proteção, cerca ou guarda, deixando que pessoas o vasculhassem a procura de objetos, pode ser culpada pelo desaparecimento de objetos pessoais que se encontravam lá no meio.
Ao recolher os objetos para separa-los e cataloga-los, a prefeitura passou a ser a responsável pelos objetos pessoais que se encontravam no meio do entulho, respondendo por perdas e danos ocorridos aos objetos pessoais a partir de então. A partir do momento em que ela os recolheu, eles passaram a estar sob sua guarda e responsabilidade.
A responsabilidade da prefeitura, perante as vítimas, é objetiva porque ela assumiu o dever de guardar os objetos para serem catalogados. Responsabilidade objetiva significa que não é necessário provar culpa ou dolo da prefeitura: basta provar que houve dano (sumiço dos objetos).
Se o entulho foi vasculhado por funcionários de empresas terceirizadas que prestam serviços à prefeitura, cabe à prefeitura a responsabilidade pelo ato dos funcionários porque, no caso, o prestador de serviços se equipara ao servidor público, cabendo à prefeitura o dever de indenizar quem foi prejudicado por qualquer ato dos prestadores de serviços.
Depois, ela pode exigir dessas empresas prestadoras de serviços (que, por sua vez, poderão exigir dos empregados envolvidos) o valor pago pelos danos causados por seus funcionários às vítimas do desabamento. É o que se chama de direito de regresso – ou seja, de haver de volta do coobrigado o valor que ela pagou por fato de terceiro. Mas o direito de regresso, nesse caso, depende de ela demonstrar a responsabilidade subjetiva de quem causou o dano, ou seja, de a prefeitura provar que quem cometeu o dano sabia o que estava fazendo.